quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Gloria Bomfim - Santo e Orixá (2007)


A Yalorixá Glória Bonfim é uma das mais expressivas e autênticas vozes que conheço. Seu canto primitivo, forte, verdadeiro, despretensioso e absolutamente intuitivo é um diamante bruto que representa, de forma emocionada, a cultura dos terreiros de candomblé, trazida pelos negros africanos e mantida aqui pelos mestiços brasileiros.

Resolvi registrar o que ouvi, cumprindo tanto quanto possível o papel de repórter, interferindo minimamente e apenas quando necessário. O repertório inédito foi recolhido da obra de Paulo César Pinheiro, compositor preferido da cantora, que a ela o entregou como um presente. Todas as músicas abordam temas ligados ao candomblé, e muitas têm a forma de cantigas de santo, utilizadas em rituais. Chamei alguns dos instrumentistas e amigos que mais admiro, músicos que entendem e respeitam essa linguagem e que já admiravam a Glória das rodas na minha casa. Todos acertaram em cheio. A característica dessas cantigas se iniciarem sempre por uma invocação, puxada pelos babalorixás ou yalorixás e respondida pelo coro das yaôs, foi respeitada por todos, se impondo aqui a qualquer concepção de arranjo. A energia que rolou no estúdio deixou claro que os orixás ficaram satisfeitos e aprovaram nossa homenagem. Axé!

A história dessa baiana é comovente e cinematográfica. Nascida em Areal, um pequeno povoado no interior da Bahia, Glória era requisitada desde muito menina pra cantar nas redondezas, em festas de casamento, batizados etc. Ela conta que muitas vezes foi tirada da cama por seu Tutu, festeiro do lugar, vestindo um camisú (daqueles de cambraia com calçola igual) e levada no balaio de um jegue pra animar essas festas. Não havia rádio e muito menos disco naqueles lugarejos em que a festa dependia dos músicos e dos cantores da região. Filha de Domingas e Miguel, a pequena intérprete de 8 anos agradava a todos com sua voz potente. De cima de um caixote de madeira, sua voz era ouvida de longe, garantindo boa dança e boa festa! Década de 60, o rock chegando às capitais, e o hit da pequena cantora era a valsa Viagem, de João de Aquino e Paulo César Pinheiro. A partir daqueles dias, a menininha começa a sonhar em ser cantora de verdade.

Mas a valsa e tudo aquilo ficaria pra trás quando, acreditando em falsas promessas de estudo e de um futuro melhor, Domingas entrega a filha aos cuidados de uma senhora. No lugar de cartilha, a menina recebeu uma colher-de-pau e o trabalho doméstico não remunerado. Voltou a subir em tamboretes, agora não mais pra cantar, mas pra alcançar o fogão e a pia. Acabou se tornando uma cozinheira de mão cheia! Aos quatorze anos veio pro Rio de Janeiro, fugindo da tal tutora. Sem documentos, pai nem mãe, tinha apenas a cara, a coragem e o dinheiro do ônibus. Trabalhou de doméstica e, dez anos depois, veio parar em minha casa. Meu filho Julião - que também estréia como violonista nesse disco - tinha apenas dois meses. Glória trabalhava sempre cantando.

Desde a primeira vez que a ouvi, já senti o que estava ali. Voz rascante e afinada, com volume impressionante, precisão rítmica admirável. E tinha cultura, ancestralidade. O repertório era irretocável. Comecei a reparar também que Paulo César Pinheiro, o dono da casa, era o compositor mais constante, com diversos parceiros: Mauro Duarte, João Nogueira, Eduardo Gudin e, naturalmente, João de Aquino. Um dia daqueles, ainda sem conhecer sua história, passei pela cozinha enquanto ela cantava Viagem, e brincando, insinuei que ela estaria puxando o saco do patrão. Ela se assustou, me pegou pelo braço e me fez sentar pra explicar. Eu falei que aquela música era do Paulinho, ora! Com os olhos cheios dágua, ela me disse não acreditar que alguém inventasse música e, menos ainda, que estivesse trabalhando na casa do criador daquela, que a acompanhava desde criança. Eram dois fenômenos: Glória achava que músicas não eram feitas, mas que apenas existiam como as cantigas de santo do candomblé. E não imaginava, absolutamente, que estava há quatro anos convivendo com o autor da sua maior lembrança! Claro que esse trabalho que apresento era inevitável. E vocês vão concordar!


Luciana Rabello


GLORIA BOMFIM - SANTO E ORIXÁ

(2007) Acari Records AR 31

Artista(s):
Gloria Bomfim

Fonogramas:

1. Santo e Orixá
2. Ogum-Menino
3. Bambueiro
4. Encanteria
5. Anel de Aço
6. Cavalo de SantO
7. Gameleira Branca
8. O Mais Velho
9. Casa-De-Coco
10. A Palma da Palmeira
11. Senhor da Justiça
12. Sultão do Mato
13. Caboclo Guaracy
14. A Revolta dos Malês

Todas as músicas são de Paulo César Pinheiro

Download é comunismo

10 comentários:

  1. Caro Comuna, esta história é realmente sublime.
    Glória Bomfim não foi parar na casa do Paulinho Pinheiro por acaso como ele me relatou uma vez. Aqui não haverá espaço para lhe contar outras coisas que aconteceram na vida deles. Coisas realmente dignas de "Santos e Orixás" .
    Aproveito para me colocar a disposição para lhe enviar arquivos de discos que tenho no acervo da Radio do Alambique.
    Abraços

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  4. Racista? Acho que o racismo está na mente de quem leu o texto... Luciana demonstra afeto com uma pessoa querida por ela neste texto. Não viaja.

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  6. Putz, Gilberto Freire?!? E aquela balela de que a escravidão no Brasil foi idílica, benévola e paternal. Defensor descarado do Lusotropicalismo, que os Portugueses eram colonizadores diferenciados dos franceses, ingleses, espanhóis e holandeses. Que admiram a cor negra... Os mesmo colonos que fizeram atrocidades nas colônias africanas de Cabo Verde,Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. Leia a obra "Guerra de Angola" escrita pelo ex-médico oficial português Màrio Moutinho de Pádua, que serviu em Luanda, e foi testemunha ocular da generosidade lusa para com seus colonizados- a mesma conduta generosa que perpassa por todo o conjunto da obra de Freire, sobretudo na supracitada "Casa Grande e Senzala"... E nessa época, a do genocídio nas colônias ultramarinas de Portugal, Freire, nas bandas de cá decantava a falácia da benignidade da escravidão no Brasil.

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    1. Mais uma pessoa que nunca leu a obra de Gilberto Freyre e fala disso a partir do que disse fulano que ouviu outro fulano dizer que a prima de mais um fulano tinha lido um artigo de um cara que talvez tinha lido uma página do autor…

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  7. Brincadeira esses comentários desse Lê Ferreira....totalmente equivocado. Como é q pode o cara ler uma coisa e entender outra completamente antagônica. E ainda falar de Gilberto Freyre sem conhecer. Vai mimi mermão!
    Euclides Amaral (Pesquisador de MPB)

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  8. Adoro Gloria Bomfim e temos um grupo chamado Os Encantados em nosso repertório não poderia faltar Paulo Cesar Pinheiro, Maria Bethania e etc... www.osencantadosoficial.blogspot.com

    Abraço a todos

    Axé

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